AI TIMOR, AI TIMOR! Quando falamos ou pensamos em Timor, sentimos ainda aflorar à pele a emoção que nos atingiu naqueles turbulentos dias do ano de 1999 quando o povo desse pequeno país foi vítima de insidiosa repressão por parte do exército indonésio e suas milícias afectas, com o intuito de o intimidar e desmobilizar do referendo sobre o seu futuro que a ONU tomara sob a sua égide. Uma reacção emocional que, convenhamos, só foi possível graças à acção da imprensa internacional, logo secundada pela portuguesa, a partir do momento em que veio à luz o filme do massacre ocorrido no cemitério de Santa Cruz, em Dili. A partir
deste acontecimento é que entrou em cena a diplomacia portuguesa,
que viria a coroar-se de êxito total com o reconhecimento do
direito à independência do território, averbando
a nossa diplomacia um importante e honroso triunfo. Até essa altura, ciente das suas limitações, Portugal parecia viver conformado com a situação de facto representada pela ocupação indonésia de Timor, que passou a ser a 27ª província daquele que é indiscutivelmente o mais poderoso Estado da região. Aos poucos, estava a diluir-se a triste lembrança do abandono a que o general Lemos Pires, então tenente-coronel e governador, se viu forçado em 1975, quando, sem meios militares à altura e sem uma orientação inequívoca das instâncias político-militares em Lisboa, não viu outra alternativa senão recuar e refugiar-se na ilha de Ataúro. Só por má fé ou ignorância é que se pode, hoje como ontem, acusar o oficial de fuga e abandono. Tivesse ele interferido activamente e sem sucesso no violento conflito que inesperadamente assolou o território dividindo o povo timorense, é quase certo que teria exposto a grave risco, com consequências imprevisíveis, a sorte dos que lá exerciam a soberania portuguesa, o que poderia constituir hoje uma sombra negra na memória do movimento revolucionário de 25 de Abril. Só por prosápia gratuita, como já ouvi a alguns, é que se pode afirmar que uma ou duas companhias de forças especiais seriam suficientes para pôr fim ao conflito e restituir a ordem ao território. Depois de ler neste site o interessante e elucidativo artigo do doutor Chrys Christello, convenço-me, de facto, de que só por mera presunção é que se pode admitir que o povo guerreiro timorense se teria acobardado com uma acção mais determinada da inexpressiva presença militar europeia no território. Não
esquecer que a maioria esmagadora das forças militares em Timor
era de recrutamento local, incluindo a quase totalidade dos quadros
inferiores. Aliás,
que digam os chefes militares indonésios das tremendas dificuldades
por que passaram para tentar submeter o povo timorense e anular a
sua resistência. Quantas toneladas de criminosas bombas de napalm
foram lançadas para dentro das florestas, devastando-as em
grandes extensões, mas sem nunca conseguir dobrar a espinha
dos guerrilheiros! A verdade é que, impressionados com a indómita resistência dos timorenses, juntámo-nos mais tarde efusivamente à sua ânsia de liberdade e independência, mas pouco conhecendo da história das suas rivalidades internas, do seu passado de lutas intestinas e do seu atrasado desenvolvimento cultural e civilizacional. E pouco
cuidando de saber da viabilidade do sucesso de um figurino político
ocidental assim repentinamente aplicado a um povo ainda muito arreigado
ao direito consuetudinário interpretado pela figura do régulo.
Isto apesar do prestígio local da Igreja Católica e
do seu potencial poder de mediação e apaziguamento de
conflitos internos, embora não haja conhecimento de que tenha
tido qualquer protagonismo útil nos recentes acontecimentos
conflituosos. É assim que a notícia dos distúrbios e da violência perpetrados nos últimos dias, agora já não visando um ocupante estrangeiro mas dilacerando a própria nação, nos veio encher de mágoa e tristeza, fazendo-nos recordar todo o investimento afectivo e toda a solidariedade da nação portuguesa e da comunidade internacional para com um povo pequeno, cristão, falante da nossa língua e que parecia desejoso de abrir uma nova página na sua história. A figura romântica de Xanana Gusmão, com o seu humanismo e plena identificação com os valores da cultura ocidental, foi a bandeira que nos suscitou a ilusão de um sucesso garantido a curto prazo para a sobrevivência da autonomia de Timor Leste, enterrando as dores e os sofrimentos do passado. Mas ignorámos
ou fingimos não ouvir o reiterado desabafo do próprio
Xanana quando afirmou que não desejava ser presidente do seu
país, mas sim dedicar-se à agricultura. É caso
para perguntar se o próprio Xanana, sem querer ser premonitório,
não tinha já a noção realista das dificuldades
breves que aguardavam a sua pátria independente, dificuldades
que a ONU não pressentiu ou não quis equacionar quando
estipulou um prazo relativamente curto para a sua presença
no território. O interesse económico de Portugal por Timor começou na era quinhentista com o negócio do sândalo e em pouco mais consistiu ao longo de séculos, com tácita aceitação entre as duas partes, sem grandes imposições de domínio e sujeição até finais do século XIX, o que contribuiu para o acentuado atraso geral em que o território se foi mantendo. Mas hoje a riqueza petrolífera de Timor, longe de representar uma promessa de felicidade futura, é para já um factor de apreensão e de complexidade na estabilização do regime político do país. Como era previsível, esse recurso energético é objecto de cobiça estrangeira, a começar por uma Austrália que, acreditamos, não tem dado nenhum ponto sem nó e até se permitiu recentemente fazer juízos depreciativos sobre a política interna do país. Então, como não somos propriamente ingénuos, é impossível não relacionar aquela intromissão com o passado australiano do major líder dos militares e polícias revoltosos e com o acordo que o primeiro ministro Mari Alkatiri parece ter firmado com os italianos da ENI para a exploração do petróleo timorense. Por outro
lado, não esqueçamos que, sendo este muçulmano
e de origem não timorense, é muito fácil manipular
em seu desfavor a opinião pública do povo católico
timorense. Ora, se as rivalidades étnicas andaram apenas adormecidas e se se mostram facilmente espoletáveis por manobras estrangeiras mais ou menos encapotadas, então parece que muito pouco crédito nos pode merecer a viabilidade do Timor Lorosae. Uma nação que não disponha de condições mínimas de coesão e solidariedade internas dificilmente pode aspirar a um estatuto de autonomia política, por muita mágoa que nos possa causar esta constatação. Pensar que a solução estará mais uma vez nas mãos da ONU, à custa de mais empenhamento de meios humanos e materiais, é como querer tapar o Sol com uma peneira. É alimentar uma utopia em que certamente nem acreditam a sério os timorenses mais lúcidos.
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